Autor: Claire Vaye Watkins*
Quem primeiro veio para o Vale da Morte foi meu pai, motivado pelo
discurso de Charles Manson. Ele sempre fazia o que Charlie pedia, e
dizia que isso significava ser uma “Família”. O deserto que meu
pai conheceu foi o lugar dos buggies de areia e do Juízo Final, a
terra acessível apenas por veículos com tração nas quatro rodas,
onde nem mesmo Helter Skelter cruzaria o seu caminho. Ele
ficou no Vale da Morte durante os assassinatos do caso Tate-LaBianca
e depois fugiu. Foi aqui que um velho garimpeiro chamado Crockett
perguntou-lhe, depois da matança, se ele realmente acreditava
naquela besteira toda do Charlie. E foi aqui que o meu pai sentiu
pela primeira vez a textura aveludada da argila dentro das suas
unhas, a liberdade de puxar um pedaço opala ou turquesa da rocha com
suas próprias mãos, o cheiro no ar de ervas do campo depois da
chuva.
Charles Manson ao ser preso, em 1969 (Wikimedia/Commons)
Acredito que era nisso que ele pensava no dia em que se aproximou de
Charlie no Spahn Ranch – depois dos assassinados mas antes do
ataque – e perguntou se os acordos seriam cumpridos. Ou a noite,
pouco depois de abrir a porta da choupana, meio sonâmbulo, e
encontrar Charlie e Tex agachados no meio da escuridão e com facas
entre os dentes. O deserto foi a sua salvação, o amor da sua vida.
Por 15 anos, até o dia em que eu nasci. O que seria de nós se este
lugar não tivesse salvado o meu pai?
Assisti um vídeo dele todo bronzeado na CNN usando uma camisa de
abotoar até o pescoço com uma gravata de bolinhas. Vi que ele
perdia tempo com um receptor defeituoso enquanto falava sobre os
amigos e a “Família”, repetindo sem parar, como estivesse louco.
Eles se consideravam anjos divinos, uma onda revolucionária que
salvaria o mundo. Em outro vídeo, ele está apoiado em travesseiros
e deitado na cama de onde não saiu até morrer de leucemia. Ele olha
para dentro da câmera e diz: Aqui estou eu, minhas lindas. Quero
que vocês saibam que as amo muito. E também quero que vocês saibam
tudo o que eu fui.
Quer dizer que ele pensou que poderia ser questionado um dia? Quando
ele morreu, eu tinha seis anos. Não tenho nenhuma lembrança que ele
esperava que eu tivesse. Mas tenho CNN e Helter Skelter. Às
vezes, eu vejo ele lá. Vejo novamente suas entrevistas, ouço sua
voz grossa e trêmula em muitos lugares familiares. Ouço, mas acho
que ele não gostaria que eu falasse sobre isso.
Na verdade, o que ele me deixou foi isso aqui: um lugar distante no
meio do deserto, na altura da Highway 127, ao sul do Vale da Morte.
Vemos isso aqui como turistas, apesar de que somos o oposto; afinal
de contas esse é um lugar que nós conhecemos muito bem. Eu e minha
irmã estamos com os pés no chão, ela movimenta os braços, eu mexo
na terra. Aqui, neste solo perigoso cheio de: cabeças de bode,
arbustos espinhosos e plástico. Escorpiões e cascavéis. Sim, é
possível encontrá-los por todos os lados. Exatamente como era
quando meu pai andava por aqui com a “Família” antes de existir
a nossa família.
Certa vez me contaram que nossos cães rodearam uma cascavel enorme
perto de casa. Meu pai pegou a cobra e cortou a cabeça dela com uma
pá, e fez questão de nos mostrar. Minha irmã estava aprendendo a
andar e ficou curiosa, tal como a filha dela é hoje, e pegou a cobra
morta nas mãos. Ouvi essa história tantas vezes, tive que jurar que
se tratava de uma lembrança. Então, minha irmã pegou a extremidade
cortada daquela cascavel, levou à boca e começou a chupar.
*Escritora norte-americana, filha de Paul Watkins, um dos braços
direitos da seita de Charles Manson, que não teve participação nos
assassinatos e, portanto, não foi condenado. Paul Watkins faleceu em
1990.
Fonte: Granta Magazine
Nenhum comentário:
Postar um comentário