terça-feira, março 05, 2013

Inci Aral: O futuro do romance


Apesar da pressão social e comercial, a procura por bons romances não diminuiu*

Autor: Inci Aral**

O mundo literário parece conviver com o receio contínuo em relação ao futuro do romance – uma questão que, se está morta ou não, ainda continua causando barulho regularmente. O romance, tal como o conhecemos hoje, surgiu com a publicação de Dom Quixote, de Cervantes, e atingiu o auge nos séculos 18 e 19. As primeiras inquietações a respeito do “futuro” surgiram nas eras de Flaubert, Stendhal e Austen, e já previam o tal fim. Não faltou quem esperasse literalmente o anúncio do funeral, mas o romance, não todos, é claro, resistiu e continua resistindo até hoje. E vive bem, em alta, forte e tão fértil como nunca.


Facsímile da primeira edição de Dom Quixote (Domínio Público-Wikimedia)

O romance representa a arte de explorar a vida humana. Reflete a natureza do Homem, a alma das sociedades e o espírito de vida das cidades. Os grandes romancistas criam obras que não são pertinentes apenas aos seus próprios países, conforme a linguagem por atacado da história, mas trabalhos de importância global que apresentam outros pontos de vistas que não os estabelecidos, onde são empregados os mais elevados princípios para se escrever discursos épicos sobre os períodos mais tumultuados da humanidade.

É triste para um amante da ficção imaginar a morte do romance ou, necessariamente, o seu próprio fim. Felizmente, não há motivos para isso. Desde que o mundo progride em passos largos a partir da era industrial, o romance tem sido conduzido firmemente para acompanhar as ordens do dia. Se tal forma de arte tão influente tivesse que se apagar nós também teríamos que abandonar as esperanças com relação a outras belezas e tesouros da criação humana.

Cada vez se fala mais do futuro do romance do que do romance em si. Será que isso acontece porque agora existe mais liberdade do que no passado? Hoje em dia, tudo é possível. Além dos estilos e das próprias narrativas, o romance não tem limites e, por isso, nunca cessou de procurar por novidades. E se deve ser encontrado no meio digital novos campos para a sua existência, então isso acontecerá em paralelo com a versão impressa, o que permitirá ao romance evoluir para algo novo e completamente diferente.

A maioria dos leitores atuais está em frente da tela. Nos países desenvolvidos menos da metade dos adultos lêem romances, e o número de leitores, especialmente entre os mais jovens, está em ligeira queda. O computador é usado para tudo, entretenimento, estudo, leitura, compras até como forma de se expressar individualmente, e assim tornou-se parte fundamental da vida diária das pessoas. Entretanto, o fato de que os leitores encontram cada vez mais o que precisam na frente das telas não significa que eles vão parar de ler. A queda no número de leitores deve ser atribuída à batalha do papel versus o digital e à conveniência da situação. Ao mesmo tempo em que a leitura digital vem se difundindo, o romance pode emergir vitorioso desse processo.

Na Turquia, são publicados em média 500 romances todos os anos, sendo que a maior parte deles são inéditos. Em 2012, esse número saltou para exatamente 780. As livrarias na Turquia estão lotadas de belos livros e de jovens ávidos por leitura. Na internet encontra-se uma grande quantidade de livros, revistas literárias, websites e fóruns com debates intensos sobre literatura. Em resumo, o interesse por romances permanece expressivo. Mesmo que em um futuro próximo a tecnologia continue a desenvolver e se inventar ainda assim os romances serão escritos utilizando-se de atrativos e apelos que nós não poderíamos nem imaginar.

Seria o romancista digital do futuro alguém dotado de malandragem, consideravelmente emotivo ou um insensível quebrador de regras? Eu não sei. Meu receio é que a intensidade e o conteúdo sofram em nome da técnica e que a alma dos romances se perca. Desde que a tecnologia tornou nossa vida mais dinâmica, o mundo digital tem sido o símbolo da inteligência. Isso mudou a nossa maneira de ver, sentir e pensar. O mundo sobre o brilho da técnica esteriliza todo tipo de processo imaginativo e paralisa a nossa própria voz. Além do mais, isso brinca com os nossos desejos. O resultado final é que o romance, queiram ou não, será forçado a entrar cada vez mais em um contexto limitado. De resto, a internet ainda não desenvolveu uma linguagem distinta o bastante no que diz respeito à arte de escrever um romance, apesar de que esse ponto é altamente possível de ser atingido em pouco tempo.

Na minha opinião, um dos problemas que ameaçam o futuro do romance é a uniformidade imposta pelas condições de mercado. Editores, de olho nas vendas, arriscam suas fichas em romancistas promissores inclinados a escrever sobre literatura barata que aborda espiritualidade, sexo ou assuntos banais do momento. São escritores incentivados a trabalhar gêneros fúteis, como o misticismo, e a transformar o romance em uma sensação do momento. Esses livros “fast-food” vendem milhões no mundo todo, quando milhares de romances de alta qualidade são relegados ao pó nas prateleiras.

Não resta dúvida de que nunca foi fácil dividir a linha entre o bom e o ruim. Os leitores escolhem um romance de acordo com o seu perfil. De qualquer modo, a publicidade agressiva e a pressão da cultura popular de massa têm sido determinante na escolha do leitor. O escritor que se adequa ao mercado pode se tornar bem sucedido embora não consiga impedir que o seu trabalho seja explorado e pirateado na internet. A luta contra a pirataria na Turquia não tem avançado muito. Aqui esse não é um assunto exclusivo às grandes cidades, livros impressos ilegalmente são vendidos abertamente nas livrarias de Anatolia e romances são baixados sem qualquer permissão.

Durante o encontro Edinburgh World Writers', o escritor China Miéville sugeriu que, afim de garantir a integridade do Estado, fosse destinado salário aos escritores. Para nós, isso parece piada. Enquanto ainda existir em nosso país a mentalidade de censurar escritores, de atirá-los na prisão, de abrir casos judiciais contra a organização PEN e de considerar perigosos clássicos como Ratos e Homens, de Steinbeck, será impossível aos romancistas viver dentro de um estado que deveria proteger e lutar pelos seus direitos.

Apesar de tudo, o romance e a psicologia individual continuam muito importantes. Escritores consagrados ainda são premiados e respeitados. Existe também grande procura por cursos e oficinas de escrita criativa. Escrever um romance se tornou o grande sonho para algumas pessoas. Estamos cercados de novas surpresas em narrativas, estruturas e linguagens. O mundo do romance é tão fértil e fascinante que se mantém em pé diante o domínio da imagem.

No entanto, a perspectiva para o futuro é nebulosa. O que os seres humanos esperam para o planeta? Como acabar com a crise econômica? Será que uma outra guerra mundial está prestes a ocorrer? Nessas situações o escritor pode se manter retraído no seu próprio mundo, indiferente aos eventos ao seu redor? Seria possível fechar os olhos e se desligar de tudo que estaria acontecendo? A resposta é sim e não. E nesse caso, podemos dizer que o espírito político do nosso tempo não se refletiu o bastante nos romances. Quando a indiferença e a recreação são a natureza das notícias, a política é vista com desprezo estimulando uma existência à parte movida por exemplos negativos e obsoletos.

Seja qual for o regime opressivo em questão, nós não podemos endossar a censura e a perseguição aos escritores, seja através do exílio ou do atentado contra suas vidas transformando-a em uma existência silenciosa. Para garantir que haja livre expressão, nós devemos sentir total desprezo pelas proibições e restrições impostas aos escritores.

A literatura e o romance estão sobre o controle de várias pressões discretas; certos assuntos são boicotados e transformados em uma cópia do aceitável pela mídia antes de serem publicados. É muito bom que escritores notáveis no mundo todo, de todas as idades, não cedam sutilmente à atual exposição e que continuem questionando com habilidade todo novo plano falso para a nossa felicidade.

Os próximos anos certamente nos dirá, com maior clareza, de que maneira o que nós estamos plantando atualmente irá afetar na prática escritores e romances. Qual o rumo que as coisas vão tomar, qual será a melhor dinâmica e de onde os assuntos vão surgir?

Quanto o marketing, que tanto afeta adversamente a inspiração, visão e processo criativo dos escritores, influenciará para baixar o nível das obras? A fim de proteger esse espírito e essa paixão, e reconquistar a herança perdida no romance atual, será preciso compreender a vida em todos os seus aspectos, e conhecer todos os símbolos e sentimentos de dor ao longo dos tempos. Por outro lado, assim como a queda espiral da humanidade segue desenfreada, o romance também pode estar nos últimos suspiros.

* Esta é uma versão editada da palestra de Inci Aral na Edinburgh World Writers' Conference, em Izmir, na Turquia, e foi traduzida para o inglês por Caroline Stockford, e apresentada na Yasar University e na British Council. A versão completa de todos as palestras estão disponíveis na página da Edinburgh World Writers' Conference.

** A escritora Inci Aral nasceu em 1944, na Turquia. Publicou quase 20 livros entre ensaios, romances e contos.

Fonte: The Guardian

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