terça-feira, novembro 25, 2014

Univocidade e Ser Infinito no pensamento de Duns Escoto*

 “Todo conhecimento começa pelo ser,
que é a primeira noção concebida pelo nosso intelecto
para que concebamos alguma coisa determinada, ou não.1
Mário Ferreira dos Santos, em Filosofia Concreta.

Condecorado com o título de Doutor Sutil e, mais tarde, Doutor Mariano, o escocês João Duns Escoto viveu entre o final do século XIII e início do século XIV. Está vinculado ao pensamento escolástico, mas é reconhecido por comentadores e especialistas em Filosofia Medieval2 como um pensador inovador e original. A possibilidade de se conhecer os seres imateriais, e conseqüentemente Deus, é a grande discussão de sua obra metafísica. Nela, Escoto busca resposta à questão: será possível ao ser humano com a sua finitude conhecer a grandeza do Ser Infinito, que é Deus? De acordo com o escocês, o entendimento a respeito do ser em si e da natureza da abstração são fundamentais para se chegar a solução da referida problemática.

Para Escoto em primeiro lugar, pontua Costa Freitas, está o ser, mas o ser na sua concepção pura, independente de qualquer distinção categorial ou modal3. O que significa entender o ser não como efeito ou resultado, como algo pronto, interpretado a partir daquilo que já é, mas o ser em estado anterior ao dado, livre de classificações e caracterizações (categorias) ou de particularidades e determinações (modos).

Ademais, se se questiona a respeito do conhecimento do ser ou daquilo que é verdadeiro, responde-se que o intelecto, em virtude do que lhe compete de puramente natural, pode conhecer o verdadeiro tomado neste sentido”4. Ou seja, Escoto sinaliza para a existência de um ser que é objeto primeiro da inteligência e que, segundo Costa Freitas: “Equivale, por isso, a entidade pura e diz-se de tudo o que é inteligível em si mesmo. Absolutamente indiferente à natureza das coisas, constitui, por isso mesmo, uma verdadeira noção transcendental.5

Vale lembrar que o referido período histórico é marcado pela transição do neoplatonismo dos clérigos que se lançavam a filosofia para o aristotelismo cujo triunfo é registrado no século XIII (Russell, 2001)6. Portanto, Escoto está renunciando à interpretação do ser a partir do viés dos universais e particulares, a ideia do Uno que descente; e renuncia também ao ser unitário que tem na revelação a fonte de conhecimento (fé e razão). A ruptura do pensador escocês com a filosofia tradicional é evidente, por exemplo, na ideia de que o conhecimento de Deus não se resume à experiência sensorial tomista, tampouco ao conceito agostiniano de iluminação divina.

Acontece que entre Deus e a inteligência humana temos o ser enquanto ser (ens inquantum ens), que está sujeito à intencionalidade de tal inteligência ou, em outras palavras, à vontade.

Da mesma maneira que o poder supremo reside na vontade de Deus, na alma humana Duns sustenta que é a vontade que governa o intelecto. O poder da vontade dá liberdade aos homens, enquanto o intelecto é restringido pelo objeto ao qual se aplica. Disto se depreende que a vontade só pode captar o que é finito, pois a existência do ser infinito é necessária e portanto anula a liberdade”. (Russell, 2001)7.

Por isso, é no ser finito, que tudo apreende no sentido de construir e dar vida à realidade existente, que é possível que o mundo seja inteligível e, portanto, é através dele – transcendentalmente – que chega-se à abstração do Ser Infinito. Não por compreensão, mas por vontade.

É o ser primeiro que dá condições à experiência, à realidade, Deus e tudo mais que existe, de tal modo que o entendimento sobre o ser nos conduz à univocidade, qual seja, a certeza de que trabalhamos com uma verdade irrefutável, coerência argumentativa, unidade lógica ou prova apodítica: a irredutível realidade do indivíduo.

O sujeito de Duns Escoto é transcendental e unívoco, entendido como aquilo que “possui um único significado, que se aplica da mesma maneira a tudo que se refere. Correspondência entre dois elementos que se dá de uma única maneira”8. O que implica não existir contradição entre aquilo que é (o ser, Deus e as criaturas), de tal maneira que trata-se de um só e mesmo conceito.

Conclui-se, assim, que à resposta a pergunta inicial (será possível ao ser humano com a sua finitude conhecer a grandeza do Ser Infinito, que é Deus?) Escoto argumenta que “Deus não é conhecido naturalmente pelo homem nesta vida, de maneia particular e própria, isto é, não é conhecido em sua essência como tal essência e em si mesma”9. Em seguida, lança o conceito de univocidade, conquanto afirma que o ser finito é condição necessária, do ponto de vista transcendental, para a realidade divina, independente de compreendê-la ou não. “O que se conhece de Deus é conhecido através de representações inteligíveis das criaturas.10

É o que Costa Freitas vai identificar como a filosofia do Amor em Escoto, uma vez que a concepção de unívoco propõe a afirmação ontológica de que tudo aquilo que é está automaticamente oposto ao nada. Nas palavras de Dos Santos: “O contrário da entidade é o nada absoluto”11.

Bibliografia

Coleção Os Pensadores. Sto. Tomás, Dante, Scot, Ockham. Vol. VIII, Abril Cultural, São Paulo. 1973.
DE LIBERA, ALAIN. A Filosofia Medieval. Tradução: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
FREITAS, MANUEL BARBOSA DA COSTA. O ser e os seres infinitos. Itinerários Filosóficos. Lisboa: Editorial Verbo, 2001.
JAPIASSÚ, H; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 3ª edição rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
RUSSELL, B. História do Pensamento Ocidental. Tradução de Laura Alves e Aurélio Rebello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
DOS SANTOS, MÁRIO FERREIRA. Filosofia Concreta. Introdução e notas: Luís Mauro Sá Martino. São Paulo: É Realizações, 2009.

1Mário Ferreira dos Santos. Filosofia Concreta, pág. 613.
2Cf. Alain de Libera destaca em A Filosofia Medieval, pág. 62, apesar de alertar para a influência da filosofia avicenista no conceito metafísico de ser em Duns Escoto.
3Manuel Barbosa da Costa Freitas. O ser e os Seres. Itinerários Filosóficos, pág. 5 e 6.
4João Duns Scot, Os Pensadores, pág. 240.
5Idem.
6Bertrand Russell. A História do Pensamento Ocidental, pág. 225.
7Idem. Pág. 225, 226.
8Hilton Japiassú & Danilo Marcondes. Dicionário Básico de Filosofia, pág. 266.
9Idem cit. 4. pág. 268.
10Idem, pág. 269.
11Idem cit. 1.

* Texto apresentado na disciplina História da Filosofia Medieval, no 2° semestre, da turma de Filosofia 2014, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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