“Todo conhecimento
começa pelo ser,
que é a primeira
noção concebida pelo nosso intelecto
para que concebamos
alguma coisa determinada, ou não.1”
Mário Ferreira dos
Santos, em Filosofia Concreta.
Condecorado
com o título de Doutor Sutil e, mais tarde, Doutor Mariano, o
escocês João Duns Escoto viveu entre o final do século XIII e
início do século XIV. Está vinculado ao pensamento escolástico,
mas é reconhecido por comentadores e especialistas em Filosofia
Medieval2
como um pensador inovador e original. A possibilidade de se conhecer
os seres imateriais, e conseqüentemente Deus, é a grande discussão
de sua obra metafísica. Nela, Escoto busca resposta à questão:
será possível ao ser humano com a sua finitude conhecer a grandeza
do Ser Infinito, que é Deus? De acordo com o escocês, o
entendimento a respeito do ser em si e da natureza da abstração são
fundamentais para se chegar a solução da referida problemática.
Para
Escoto em primeiro lugar, pontua Costa Freitas, está o ser, mas o
ser na sua concepção pura, independente de qualquer distinção
categorial ou modal3.
O que significa entender o ser não como efeito ou resultado, como
algo pronto, interpretado a partir daquilo que já é, mas o ser em
estado anterior ao dado, livre de classificações e caracterizações
(categorias) ou de particularidades e determinações (modos).
“Ademais,
se se questiona a respeito do conhecimento do ser ou daquilo que é
verdadeiro, responde-se que o intelecto, em virtude do que lhe
compete de puramente natural, pode conhecer o verdadeiro tomado neste
sentido”4.
Ou seja, Escoto sinaliza para a existência de um ser que é objeto
primeiro da inteligência e que, segundo Costa Freitas: “Equivale,
por isso, a entidade pura e diz-se de tudo o que é inteligível em
si mesmo. Absolutamente indiferente à natureza das coisas,
constitui, por isso mesmo, uma verdadeira noção transcendental.5”
Vale
lembrar que o referido período histórico é marcado pela transição
do neoplatonismo dos clérigos que se lançavam a filosofia para o
aristotelismo cujo triunfo é registrado no século XIII (Russell,
2001)6.
Portanto, Escoto está renunciando à interpretação do ser a partir
do viés dos universais e particulares, a ideia do Uno que descente;
e renuncia também ao ser unitário que tem na revelação a fonte de
conhecimento (fé e razão). A ruptura do pensador escocês com a
filosofia tradicional é evidente, por exemplo, na ideia de que o
conhecimento de Deus não se resume à experiência sensorial
tomista, tampouco ao conceito agostiniano de iluminação divina.
Acontece
que entre Deus e a inteligência humana temos o ser enquanto ser (ens
inquantum ens), que está sujeito à intencionalidade de tal
inteligência ou, em outras palavras, à vontade.
“Da
mesma maneira que o poder supremo reside na vontade de Deus, na alma
humana Duns sustenta que é a vontade que governa o intelecto. O
poder da vontade dá liberdade aos homens, enquanto o intelecto é
restringido pelo objeto ao qual se aplica. Disto se depreende que a
vontade só pode captar o que é finito, pois a existência do ser
infinito é necessária e portanto anula a liberdade”. (Russell,
2001)7.
Por
isso, é no ser finito, que tudo apreende no sentido de construir e
dar vida à realidade existente, que é possível que o mundo seja
inteligível e, portanto, é através dele – transcendentalmente –
que chega-se à abstração do Ser Infinito. Não por compreensão,
mas por vontade.
É
o ser primeiro que dá condições à experiência, à realidade,
Deus e tudo mais que existe, de tal modo que o entendimento sobre o
ser nos conduz à univocidade, qual seja, a certeza de que
trabalhamos com uma verdade irrefutável, coerência argumentativa,
unidade lógica ou prova apodítica: a irredutível realidade do
indivíduo.
O
sujeito de Duns Escoto é transcendental e unívoco, entendido como
aquilo que “possui um único significado, que se aplica da mesma
maneira a tudo que se refere. Correspondência entre dois elementos
que se dá de uma única maneira”8.
O que implica não existir contradição entre aquilo que é (o ser,
Deus e as criaturas), de tal maneira que trata-se de um só e mesmo
conceito.
Conclui-se,
assim, que à resposta a pergunta inicial (será possível ao ser
humano com a sua finitude conhecer a grandeza do Ser Infinito, que é
Deus?) Escoto argumenta que “Deus não é conhecido naturalmente
pelo homem nesta vida, de maneia particular e própria, isto é, não
é conhecido em sua essência como tal essência e em si mesma”9.
Em seguida, lança o conceito de univocidade, conquanto afirma que o
ser finito é condição necessária, do ponto de vista
transcendental, para a realidade divina, independente de
compreendê-la ou não. “O que se conhece de Deus é conhecido
através de representações inteligíveis das criaturas.10”
É
o que Costa Freitas vai identificar como a filosofia do Amor em
Escoto, uma vez que a concepção de unívoco propõe a afirmação
ontológica de que tudo aquilo que é está automaticamente oposto ao
nada. Nas palavras de Dos Santos: “O contrário da entidade é o
nada absoluto”11.
Bibliografia
Coleção
Os Pensadores. Sto. Tomás,
Dante, Scot, Ockham. Vol.
VIII, Abril Cultural, São Paulo. 1973.
DE
LIBERA, ALAIN.
A
Filosofia Medieval.
Tradução: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
FREITAS,
MANUEL BARBOSA DA COSTA.
O
ser e os seres infinitos. Itinerários Filosóficos.
Lisboa: Editorial Verbo, 2001.
JAPIASSÚ,
H; MARCONDES, D.
Dicionário
básico de filosofia.
3ª edição rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
RUSSELL,
B.
História
do Pensamento Ocidental.
Tradução de Laura Alves e Aurélio Rebello. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2001.
DOS
SANTOS, MÁRIO FERREIRA.
Filosofia
Concreta.
Introdução e notas: Luís Mauro Sá Martino. São Paulo: É
Realizações, 2009.
1Mário
Ferreira dos Santos. Filosofia Concreta, pág. 613.
2Cf.
Alain de Libera destaca em A Filosofia Medieval, pág. 62, apesar de
alertar para a influência da filosofia avicenista no conceito
metafísico de ser em Duns Escoto.
3Manuel
Barbosa da Costa Freitas. O ser e os Seres. Itinerários
Filosóficos, pág. 5 e 6.
4João
Duns Scot, Os Pensadores, pág. 240.
5Idem.
6Bertrand
Russell. A História do Pensamento Ocidental, pág. 225.
7Idem.
Pág. 225, 226.
8Hilton
Japiassú & Danilo Marcondes. Dicionário Básico de Filosofia,
pág. 266.
9Idem
cit. 4. pág. 268.
10Idem,
pág. 269.
11Idem
cit. 1.
* Texto apresentado na disciplina História da Filosofia Medieval, no 2° semestre, da turma de Filosofia 2014, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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