quarta-feira, novembro 26, 2014

Paz, um dever perpétuo e universal*

Felicidade e imperativo categórico no pensamento de Immanuel Kant

Por volta de 1762, o pensador franco-suíço Jean-Jacques Rousseau escreveu aquele que é um dos seus principais trabalhos e que se consagrou um clássico do iluminismo, a obra O Contrato Social. A ideia do “bom selvagem”, já iniciada por Montaigne1, ganha o coração dos mais céticos até então entorpecidos pelo naturalismo newtoniano e pela matematização leibniziana que cobriu a Europa na Era da Razão. Na França, Luís XVI chega ao poder; Cavendish e Priestley avançam nas pesquisas com o hidrogênio no Reino Unido; e, em Konigsberg, na Alemanha, ou melhor, na antiga Prússia, o filósofo Immanuel Kant publica a impactante Crítica da Razão Pura (1781).

Kant viveu o momento empolgante e inédito de promulgação dos direitos civis alinhando-se com a filosofia de Thomas Hobbes no âmbito político2. Defendeu uma ética pautada em regras e, portanto, em preceitos morais – mantendo desconfiança em relação à boa inclinação natural dos homens. Sua reflexão difere da virtude aristotélica como modelo de conduta e abstrai a validade das leis morais a um nível descomunal desenvolvendo uma metafísica específica para se referir à ética.

Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática. Se a razão determina infalivelmente a vontade, as ações de um tal ser, que são conhecidas como objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias, isto é, a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer bom”3.

No conflito das ideias transcendentais, Kant propõe que a causalidade advinda das leis da natureza não é a única via por onde se pode conhecer os fenômenos do mundo, pois, no caso do homem, por exemplo, elemento da natureza e do conhecimento, essa cadeia causal se expressa de outra maneira. Qual seja, através da representação, ou da ética, mas uma ética diferente da tradicional. Porque a ética em si, de acordo com o filósofo alemão, não leva à felicidade. O que pode ser considerado bom para um indivíduo pode não ser ao outro.

Isso porque os fenômenos da natureza são identificáveis através de sua causalidade, mas na natureza humana existe a causalidade pela liberdade que não vai ao encontro de certos determinismos. Em Kant, a razão produz uma maneira de querer específica, que é o querer ético, em outras palavras: a vontade. Porém, uma vontade que tem de ser voltada para o universal, assim como para o bem e o dever, pois é deontológica, e não teleológica como em Aristóteles.

De tal modo, surge a proposta kantiana de tratar o próximo sem caracterizá-lo como um meio, mas como um fim em si. A ideia é superar o homem enquanto tensão com a natureza conduzindo-o além da civilidade à moralidade – na qual a sociabilidade insociável o distancia. Na perspectiva histórica, Kant é filho do iluminismo e, conseqüentemente, depositário da razão. É através dela, acredita o filósofo alemão, que podemos responder às perguntas que dizem respeito a legitimação de nossas ações.

Contudo, há o conflito entre a razão pura e a razão prática, entre os princípios a serem adotados no âmbito das regras particulares ou gerais. Daí nasce a divisão entre as máximas subjetivas e os imperativos universais.

Nesse último caso, a ética esbarra primeiramente nos meandros do desejo, da destreza, técnica, problemática e prudência, ou seja, no campo do imperativo hipotético, para elevar-se até o valor de modo universal e necessário que é o dever ser4 (söllen), a boa vontade, ou o imperativo categórico. De acordo com o filósofo Rawls, “Por imperativo categórico Kant entende um princípio de conduta que se aplica a uma pessoa em virtude de sua natureza de ser racional igual e livre.5

A defesa da autonomia da lei moral, colocando a boa vontade no patamar de máxima universalmente legisladora, rompe com os alicerces da ética tradicional cujo entendimento se fazia através de princípios como a vontade de Deus, a ciência natural e o sentimento moral, ou de conceitos como o de harmonia e perfeição (matemática). Do ponto de vista crítico, a exemplo da análise feita por Bertrand Russell, a boa vontade kantiana como caminho incondicional para se chegar a verdadeira felicidade é uma opinião radical e que pode ser considerada um tanto austera. “Tudo se converte numa série de deveres bastante desagradáveis e enfadonhos, executados não por desejo, mas por princípio. Quem os executa é a boa vontade, a única considerada incondicionalmente boa”6.

Russell identificou no imperativo categórico uma série de conseqüências muitas vezes impertinentes e teceu os mesmos comentários em relação ao panfleto “A Paz Perpétua”, publicado em 1795. Contudo, o filósofo britânico não deixou de ressaltar que as duas ideias fundamentais expostas no panfleto, a de governo representativo e de federação mundial, deveriam ser efetivamente recordadas “nos nossos dias”7, tendo em vista a concordância na sociedade contemporânea de que a busca pela felicidade deve se fazer através de princípios morais.

Bibliografia

Coleção Os Pensadores. Montaigne, Nova Cultural, São Paulo. 1991.
Coleção Os Pensadores. Hobbes, Nova Cultural, São Paulo. 1999.
JAPIASSÚ, H; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 3ª edição rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1995.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução: Almiro Pisseta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
RUSSELL, Bertrand. História do Pensamento Ocidental. Tradução de Laura Alves e Aurélio Rebello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

1Ensaios, capítulo XXXI, Dos Canibais.
2“Tudo, portanto, que advém de um tempo de Guerra, onde cada homem é Inimigo de outro homem...”. O Leviatã, Parte I, capítulo XIII.
3Fundamentação da Metafísica dos Costumes, p. 47.
4“É o dever mesmo que é o bem, não tendo outra justificativa senão ele mesmo”. Dicionário Básico de Filosofia, pág. 69.
5Cf. John Rawls, em Uma Teoria da Justiça, pág. 277.
6Cf. Russell, em História do Pensamento Ocidental, pág. 349.
7Idem, pág. 350.

* Texto apresentado na disciplina Ética e Cidadania II, no 2° semestre, da turma de Filosofia 2014, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

terça-feira, novembro 25, 2014

Univocidade e Ser Infinito no pensamento de Duns Escoto*

 “Todo conhecimento começa pelo ser,
que é a primeira noção concebida pelo nosso intelecto
para que concebamos alguma coisa determinada, ou não.1
Mário Ferreira dos Santos, em Filosofia Concreta.

Condecorado com o título de Doutor Sutil e, mais tarde, Doutor Mariano, o escocês João Duns Escoto viveu entre o final do século XIII e início do século XIV. Está vinculado ao pensamento escolástico, mas é reconhecido por comentadores e especialistas em Filosofia Medieval2 como um pensador inovador e original. A possibilidade de se conhecer os seres imateriais, e conseqüentemente Deus, é a grande discussão de sua obra metafísica. Nela, Escoto busca resposta à questão: será possível ao ser humano com a sua finitude conhecer a grandeza do Ser Infinito, que é Deus? De acordo com o escocês, o entendimento a respeito do ser em si e da natureza da abstração são fundamentais para se chegar a solução da referida problemática.

Para Escoto em primeiro lugar, pontua Costa Freitas, está o ser, mas o ser na sua concepção pura, independente de qualquer distinção categorial ou modal3. O que significa entender o ser não como efeito ou resultado, como algo pronto, interpretado a partir daquilo que já é, mas o ser em estado anterior ao dado, livre de classificações e caracterizações (categorias) ou de particularidades e determinações (modos).

Ademais, se se questiona a respeito do conhecimento do ser ou daquilo que é verdadeiro, responde-se que o intelecto, em virtude do que lhe compete de puramente natural, pode conhecer o verdadeiro tomado neste sentido”4. Ou seja, Escoto sinaliza para a existência de um ser que é objeto primeiro da inteligência e que, segundo Costa Freitas: “Equivale, por isso, a entidade pura e diz-se de tudo o que é inteligível em si mesmo. Absolutamente indiferente à natureza das coisas, constitui, por isso mesmo, uma verdadeira noção transcendental.5

Vale lembrar que o referido período histórico é marcado pela transição do neoplatonismo dos clérigos que se lançavam a filosofia para o aristotelismo cujo triunfo é registrado no século XIII (Russell, 2001)6. Portanto, Escoto está renunciando à interpretação do ser a partir do viés dos universais e particulares, a ideia do Uno que descente; e renuncia também ao ser unitário que tem na revelação a fonte de conhecimento (fé e razão). A ruptura do pensador escocês com a filosofia tradicional é evidente, por exemplo, na ideia de que o conhecimento de Deus não se resume à experiência sensorial tomista, tampouco ao conceito agostiniano de iluminação divina.

Acontece que entre Deus e a inteligência humana temos o ser enquanto ser (ens inquantum ens), que está sujeito à intencionalidade de tal inteligência ou, em outras palavras, à vontade.

Da mesma maneira que o poder supremo reside na vontade de Deus, na alma humana Duns sustenta que é a vontade que governa o intelecto. O poder da vontade dá liberdade aos homens, enquanto o intelecto é restringido pelo objeto ao qual se aplica. Disto se depreende que a vontade só pode captar o que é finito, pois a existência do ser infinito é necessária e portanto anula a liberdade”. (Russell, 2001)7.

Por isso, é no ser finito, que tudo apreende no sentido de construir e dar vida à realidade existente, que é possível que o mundo seja inteligível e, portanto, é através dele – transcendentalmente – que chega-se à abstração do Ser Infinito. Não por compreensão, mas por vontade.

É o ser primeiro que dá condições à experiência, à realidade, Deus e tudo mais que existe, de tal modo que o entendimento sobre o ser nos conduz à univocidade, qual seja, a certeza de que trabalhamos com uma verdade irrefutável, coerência argumentativa, unidade lógica ou prova apodítica: a irredutível realidade do indivíduo.

O sujeito de Duns Escoto é transcendental e unívoco, entendido como aquilo que “possui um único significado, que se aplica da mesma maneira a tudo que se refere. Correspondência entre dois elementos que se dá de uma única maneira”8. O que implica não existir contradição entre aquilo que é (o ser, Deus e as criaturas), de tal maneira que trata-se de um só e mesmo conceito.

Conclui-se, assim, que à resposta a pergunta inicial (será possível ao ser humano com a sua finitude conhecer a grandeza do Ser Infinito, que é Deus?) Escoto argumenta que “Deus não é conhecido naturalmente pelo homem nesta vida, de maneia particular e própria, isto é, não é conhecido em sua essência como tal essência e em si mesma”9. Em seguida, lança o conceito de univocidade, conquanto afirma que o ser finito é condição necessária, do ponto de vista transcendental, para a realidade divina, independente de compreendê-la ou não. “O que se conhece de Deus é conhecido através de representações inteligíveis das criaturas.10

É o que Costa Freitas vai identificar como a filosofia do Amor em Escoto, uma vez que a concepção de unívoco propõe a afirmação ontológica de que tudo aquilo que é está automaticamente oposto ao nada. Nas palavras de Dos Santos: “O contrário da entidade é o nada absoluto”11.

Bibliografia

Coleção Os Pensadores. Sto. Tomás, Dante, Scot, Ockham. Vol. VIII, Abril Cultural, São Paulo. 1973.
DE LIBERA, ALAIN. A Filosofia Medieval. Tradução: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
FREITAS, MANUEL BARBOSA DA COSTA. O ser e os seres infinitos. Itinerários Filosóficos. Lisboa: Editorial Verbo, 2001.
JAPIASSÚ, H; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 3ª edição rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
RUSSELL, B. História do Pensamento Ocidental. Tradução de Laura Alves e Aurélio Rebello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
DOS SANTOS, MÁRIO FERREIRA. Filosofia Concreta. Introdução e notas: Luís Mauro Sá Martino. São Paulo: É Realizações, 2009.

1Mário Ferreira dos Santos. Filosofia Concreta, pág. 613.
2Cf. Alain de Libera destaca em A Filosofia Medieval, pág. 62, apesar de alertar para a influência da filosofia avicenista no conceito metafísico de ser em Duns Escoto.
3Manuel Barbosa da Costa Freitas. O ser e os Seres. Itinerários Filosóficos, pág. 5 e 6.
4João Duns Scot, Os Pensadores, pág. 240.
5Idem.
6Bertrand Russell. A História do Pensamento Ocidental, pág. 225.
7Idem. Pág. 225, 226.
8Hilton Japiassú & Danilo Marcondes. Dicionário Básico de Filosofia, pág. 266.
9Idem cit. 4. pág. 268.
10Idem, pág. 269.
11Idem cit. 1.

* Texto apresentado na disciplina História da Filosofia Medieval, no 2° semestre, da turma de Filosofia 2014, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

quinta-feira, outubro 30, 2014

Dois pesos, duas medidas*

O bem supremo aristotélico como finalidade do Estado frente ao cidadão

            Na metade do século IV a. C., os primeiros vestígios de declínio da aclamada democracia ateniense[1], o sofismo predominante e a expansão alexandrina alcançando bárbaros, exigiram do filósofo Aristóteles (384-322 a.C.) a tarefa de pensar a questão grego-política por meio do viés analítico – tão caro ao seu projeto de investigação filosófica. A pergunta a ser respondida era: “Qual o melhor sistema de governo?”.

Ainda que o Estagirita mantivesse a busca pelo bem supremo como fim maior da organização social, seu raciocínio tomou rumo oposto ao dos pré-Socráticos e ao de Platão – esse, sim, um genuíno cidadão grego –, ao elaborar um conceito de justiça que extrapolou a tradição helênica e o ideário constituído na República. Para os contemporâneos e sucessores de Tales de Mileto, os deuses; para Platão, começar do zero expulsando poetas e coletivizando mulheres e crianças; para Aristóteles, é preciso fazer “ciência” e enxergar a política de forma mais completa.

Segundo o filósofo, o exame da matéria política deve deixar o plano da generalização, da ideia de que os seres humanos (cidadãos) são todos iguais, e tem de passar pelo princípio de análise em virtude de sua natureza diversa tal qual os demais objetos do conhecimento.

“Acostumamo-nos a analisar outras coisas compostas até que não possam mais ser subdivididas; façamos o mesmo com o Estado e com as partes que o compõe; e entenderemos melhor as diferenças entre um e outras, e se podemos deduzir algum princípio de funcionamento das diversas partes”. (Política, I, 1, 3)

Esse princípio de funcionamento é o que define o arquiteto enquanto construtor de casas, o marceneiro enquanto fabricante de cadeiras, o médico enquanto especialista em saúde. Todo cidadão, de acordo com Aristóteles, antes do caráter político, tem sua predisposição natural a determinadas habilidades[2]. Conciliar essas características (diferenças) com a inclinação para o convívio social, mantendo o equilíbrio e a harmonia necessárias, é o norte que a política deve seguir. A garantia do bem comum ao cidadão é a garantia do bem comum ao Estado, ou seja, a virtude.

Reta Justa

Aristóteles entende que só é bom (justo) aquilo que faz bem a todos. Por isso, os extremos devem ser evitados e a medida certa (meio-termo) empreendida. Aqui notamos aquilo que Reale[3] vai classificar como uma crítica ao comunismo platônico, uma vez que o Estagirita sinaliza que um governo do povo privilegiaria somente uma camada social. Sendo assim, na Política, três são as formas de governo ideais: a monarquia, a aristocracia e a politeia. 

“Antes de mais nada, é preciso dizer que as três formas de governo, quando exercidas com retidão, são naturais e portanto boas, porque o bem do Estado consiste em visar o bem comum”.
(Introdução à Aristóteles, cap. VI, pág. 133).

E três, são as formas ilegítimas: a tirania, a oligarquia e a democracia (vista como privilégio de apenas uma classe). Porque essas últimas estão fora de ordem, são desmedidas. Profundo conhecedor de outras cidades e regiões, Aristóteles entendia que apenas em Atenas seria possível a realização da pólis ideal devido ao caráter e à cultura do cidadão grego que automaticamente o eximia de viver sob a tutela de um governo ilegítimo.

Por outro lado, ao decompor o Estado até a família e, depois, até o indivíduo, Aristóteles mostra, conforme aponta Russell, que mesmo no nível mais primitivo de organização existe uma noção de ordem. “Ordem é, antes de tudo, ordem social”[4].

Olhar teleológico

Portanto, é imprescindível compreender que Aristóteles visa fazer conhecimento a partir da ideia de que tudo é composto dentro de uma lógica e constituído de uma determinada finalidade, ou objetivo. Foi assim com a ética, biologia, metafísica e outros temas. Ou seja, a política também guarda as características intrínsecas à sua natureza e tais elementos se compõe buscando um fim ético.

No caso dos cidadãos, enquanto seres que naturalmente tendem ao convívio social[5] e não à exclusão e retidão extrema, esse fim não poderia ser algo que causasse prejuízo, dor e sofrimento, ou tampouco a extinção dos próprios indivíduos.   

Isso significa que a boa sociedade caminha em direção ao seu único objetivo: a felicidade. O Estado ideal, portanto, seria o Estado feliz. Enquanto garantia de manter guardadas as devidas proporções.

Bibliografia

Coleção Os Pensadores. Aristóteles, Nova Cultural, São Paulo. 1999. Política, I, 1; II, 4. Metafísica, I, 1. Ética a Nicômaco, I e II.
JAEGER, W. (1936) Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
JAPIASSÚ, H; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 3ª edição rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
RAVEN, J. E.; KIRK, G. S.; SCHOFIELD, M. Os Filósofos Pré-Socráticos. Tradução de Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 8ª ed., 2013.
REALE, GIOVANNI. Introdução à Aristóteles. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
RUSSELL, B. História do Pensamento Ocidental. Tradução de Laura Alves e Aurélio Rebello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.



[1]   Cf. o historiador alemão Werner Jaeger tão bem ilustra no Livro Quarto da sua obra Paideia, a formação do homem grego.
[2]   Aqui encontra-se uma das discussões polêmicas em relação à filosofia aristotélica em razão do conceito de cidadão  que exclui a figura da mulher na sociedade e que contempla a existência de escravos, bem como de pessoas incapazes de se civilizar (bárbaros e estrangeiros).
[3]   Reale, Giovanni, Introdução à Aristóteles, pág 130,136.
[4]   Russel, Bertrand, História do Pensamento Ocidental, pág. 18. 3ª ed.
[5]   ζῷον πoλίτικoν (Zóon Politikon): conceito de animal político, ser social, exposto no livro Política. Assim como o homem tende (finalidade) à sociedade, tende ao saber, como exposto na Metafísica, e por isso à virtude.

* Texto apresentado na disciplina Ética e Cidadania II, no 2° semestre, da turma de Filosofia 2014, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

quarta-feira, outubro 29, 2014

A verdade mata*

Em "Giordano Bruno", diretor italiano mostra os últimos passos do filósofo renascentista

Religião, política, sexo e ciência. Esses são os principais ingredientes que compõem a elegante e fluvial Veneza, na Itália, na transição do século XVI para o XVII, quando as chamas das fogueiras da Inquisição começavam a se apagar. Epicentro cultural, artístico, comercial, naval e político-religioso, a cidade foi literalmente o destino – final – do frade, filósofo, escritor e astrônomo, Giordano Bruno, cuja vida foi retratada de maneira preciosa na produção de Giuliano Montaldo, de 1973.

Dono de uma sabedoria única, Giordano Bruno construiu uma história que por si só tornou-se sinônimo de spoiler1 uma vez que o seu trágico desfecho (na fogueira em Roma) é de conhecimento geral. No entanto, são os motivos que o levaram à condenação que servem de costura para a trama engenhosa montada pelo diretor italiano.

O filósofo foi bastante polêmico. Considerava que o mundo era um organismo vivo, harmônico, infinito e constituído de outros mundos completamente desconhecidos do ser humano. Criticou o geocentrismo aristotélico e defendeu o heliocentrismo demonstrando com fatos matemáticos que a Terra e os demais astros do sistema solar giravam em torno do Sol. Acreditava na metempsicose, ou seja na transmigração das almas, numa clara influência do pitagorismo. Entendia que todo filósofo é dono do próprio destino e que todas as pessoas têm a capacidade e o direito de filosofar. “Não existe diferença entre o Papa e um artesão, todos os homens são iguais”, escreveu Bruno.

Após percorrer as principais nações européias, o filósofo foi à Veneza e se hospedou na casa de um nobre local interessado em conhecimentos de magia. Nessa época, Giordano Bruno já era muito respeitado como cientista, porém visto como mago. Há também quem enxergasse nele a verdadeira encarnação do diabo, apesar de que – sem levar em consideração o nobre que o acolheu e os condenados pela Inquisição – ninguém ousou denunciá-lo.

Ainda em Veneza, Bruno foi julgado e obrigado a abjurar de suas ideias e filosofia, o que não passou de uma estratégia para continuar livre e pensante. Embora revolucionária, sua nova visão do cosmo e do Homem fez com que obtivesse o apoio de membros do clero que sinalizaram favorável a sua liberdade desde que as ofensas à Igreja fossem retiradas de suas obras. Bruno recuou, não abriu mão de seus princípios e acabou enviado à Roma – que se adiantava de todas as maneiras para tentar queimá-lo.

Ateísmo, blasfêmia, conspiração, heresia, traição, foram algumas das justificativas utilizadas para enviá-lo à fogueira. Isso sem falar na atuação política do filósofo que o diretor Montaldo expôs de forma brilhante. Durante o diálogo com os religiosos que o condenavam, Bruno refutou a crítica de um clérigo aos sistemas políticos de Estados como a França, Inglaterra e Alemanha, alegando que fora justamente os cristãos que ensinaram aos “novos” políticos como administrar as finanças e controlar o povo a partir da religião. “Por isso, esses Estados se dizem laicos e permitem todas as religiões”.

Antes de ser levado ao espetáculo de Campo de Fiori, Giordano Bruno ainda lançou dúvidas em relação à Santíssima Trindade agostiniana, na qual alegava ser incompreensível, denunciou as mazelas sanguinárias da Igreja associando tais atitudes com superstição, ignorância e violência, e não deixou de fixar suas concepções sobre a matéria, a forma, o universo e o todo.

O filme também aborda um aspecto importante na personalidade de Bruno, que é o seu caráter orgulhoso. O diretor deixa bem claro em diversas passagens que o filósofo poderia ter sido mais brando em comportamento, mas o espírito de liberdade o impedia de resignar-se. Sendo assim, não restou-lhe outro caminho se não o do “microondas” no fatídico 8 de fevereiro de 1600 e a conseqüente proibição de seus livros – o que não impediu toda a reforma que ocorreu na política e na ciência nos anos seguintes.

Por fim, vale destacar a trilha sonora da película composta com maestria pelo genial Ennio Morricone que uniu a pegada western macarrônica com o ponto fúnebre dos cantos celestiais. É assim que a verdade continua sendo dita. Ora pro nobis.


1Spoiler é um palavra de origem inglesa que significa basicamente “estraga-prazeres”, no que diz respeito à pessoa que revela intencionalmente o final de uma história inédita. Em português pode ser relacionada com o termo Espoliação ou com o verbo Esbulhar, conforme o dicionário Uol Michaelis. Fonte: http://www.tecmundo.com.br/youtube/2459-o-que-e-spoiler-.htm e http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=esbulhar, último acesso 25/05/2014.

* Texto apresentado na disciplina Oficina de Leitura e Produção de Texto Acadêmico, no 1° semestre, da turma de Filosofia 2014, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.